Sexta-feira, 17 de Abril de 2009, 22 horas.
A rua está mais escura e fria do que seria de esperar. Choveu todo o dia, e aquela impressão de humidade misturada com sujidade acumulada, transforma a cidade num local desconfortável para passear. São as luzes de néon em cada bodega que ajudam as poucas pessoas que circulam, a escolher o melhor local para deixar o álcool atenuar os danos de um dia de rotinas que acaba.
Com o reflexo que cada lâmpada, cada disposição de publicidade, cada montra transmitem para o passeio, vai chegando uma sombra familiar. Ao longe, já se identifica o estilo. Aquela forma de andar segura, firme e estóica, com umas calças de ganga corte “Haute-cuture” mas já roçadas, casaco de cabedal molhado nos ombros e com gotas a escorrerem por todo o lado e, no pescoço, a só se identificar um fio de prata, que reluz à vontade de cada luz.
Está a fumar, melhor a acabar um cigarro, pois dá passas constantes e repetidas. E se o andar é confiante, já o fumar transmite alguma apreensão à velocidade que o cigarro desaparece. Algo inquieta-o.
Bem, com esta crise, provavelmente qualquer pessoa que se dirija a um café deve ficar inquieta, pois as coisas estão difíceis. As conversas negativas transmitidas com uma desacutilância tremenda na televisão dão azo a pontos de vista políticos de qualquer pessoa descontente, para mais, num bar onde a palavra pode ser ouvida, bastando para tal beber uma cerveja, estar atento às notícias e confiar que lá esteja alguém mais desligado do fenómeno político para que se consiga impingir-lhe uma batelada de opiniões pessoais disfarçados de conselhos de quem sabe muito do que se passa nos bastidores, quando na realidade o que acontece é que a vida anda a correr mal e dava jeito melhorar um ou outro ponto de apoios estatais. Igualdade sim, mas desde que me beneficie directamente sem ter que abdicar de nada em prol do bem comum – era o que normalmente transparecida nos vidros dos cafés.
O “Barrosos”, que herdara o nome da família que o geria há mais de trinta anos, era exemplo excelente desse opinar por opinar, porque sim. Era um bar interessante. Lá juntavam-se ao sabor do álcool – cerveja maioritariamente, da música ambiente – um chillout muito pouco eclético, e da televisão – que abdicava várias vezes do futebol em prol das notícias, um grupo particular de pessoas, maioritariamente na casa dos trinta anos, com carreiras em ascensão e vencimentos cada vez mais elevados, alguns com formação académica, muitos com carros novos, mais ainda com a ideia de saberem mais da vida do que realmente sabem, enfim, muita parra, pouca uva.
Evidentemente, como em cada bar deste Portugal, tínhamos o bêbado profissional, que se sentava religiosamente no balcão, na segunda cadeira mais próxima da casa de banho. Escusado será dizer que ninguém se sentava na primeira e quem se sentava na terceira normalmente estava acompanhada e de costas para ele. Chamava-se Xico.
O Xico, entrou no alcoolismo muito cedo incentivado pelas constantes batalhas existentes na sua família humilde, com um agregado familiar de dois pais completamente odiáveis e que se odiavam mutuamente, mas que tinham medo de ficarem sozinhos depois de separados e por isso ficaram juntos e lixaram os outros elementos do agregado – o Xico e o irmão que imigrara para a Suíça para ser picheleiro, porque simplesmente já não aguentava mais, daí ninguém saber dele para mais de vinte anos. O Xico tinha quarenta e cinco anos e só beijava alguém quando pagava para o efeito, estava completamente acabado devido ao excesso de álcool, mas ainda assim era uma pessoa sempre asseada, que deixava que brincassem com ele em troca de um copito, que não incomodava ninguém, nem nunca existira uma única queixa em relação à conduta dele no bar. Sem dúvida alguém vencido pelo vício, mas que sabia viver em sociedade.
Se o Xico era uma pacata aldeia naquele universo “Barrosos”, o Sr. Henriques era a cidade, o reboliço em pessoa, sempre à procura de motivos para mandar vir com os outros clientes. Tinha setenta e dois anos e sem paciência para continuar a trabalhar na sua loja de ferragens na baixa da cidade. Chegava sempre ao bar a perguntar se alguém tinha visto as notícias escandalosas de modernices, porque no tempo dele é que era bom, não havia nada disso, prevaleciam os valores do futebol, do fado e de Fátima, “Esses é que eram tempos bons para fazer nascer uma criança. Agora ela nasce logo amaldiçoada pelo médico que cobra à mãe uma batelada só por ajudar no parto”, dizia sempre quando lembrava o netinho que nascera numa clínica privada por capricho da nora. Era alguém fora do tempo, a sociedade evoluíra sem lhe avisar e em vez de a tentar apanhar, estava a tentar resistir-lhe, e isso estava a ser o fim dele. Não se deve criticá-lo, pois se foi feliz numa outra era, é natural que agora não se sinta à vontade e se proteja com ataques constantes a esta que lhe tirou a felicidade.
Para além disso, existia também um saudável atrito entre ele e o dono do “Barrosos”, o Sr. José Maria.
O Sr. José Maria, como parte do nome indica, era uma Maria vai com todos, e isso deixava o Sr. Henriques doido. Isso tinha piada, mas também uma justificação. O José Maria, mais novo vinte anos que o Henriques crescera no bar a ajudar o pai, e sempre se pautara por um comportamento muito angelical até 1974, sendo mesmo muito apreciado e louvado pelo Henriques. Com o período pós-25 de Abril, tornou-se um revolucionário que andava pelas ruas com roupas todas hippies, a anunciar uma revolução cultural. Isso não caiu bem no Henriques, que viu nele uma coisa detestável - o José era um peixe que nadava ao sabor da corrente! E a educação do Henriques só via homens de princípios bem definidos e não permitia transformismos por motivo algum!
A relação foi, a partir daí, descambando, com civismo é certo, mas sempre a piorar. Sempre que o Sr. José Maria falava de qualquer coisa no café a apoiar algo ou alguém, o Sr. Henriques prontamente socorria-se da sua memória de elefante e lá mandava um soundbit, mas bem fundamentado!
Entre os habitues, na mesa três, tínhamos o casal ”horripiles”, João Bartolomeu e a sua namorada Melanie Teixeira. João era um verdadeiro artista, vendedor de carros profissional, sempre a somar recordes de comissões, tinha um dom natural para convencer qualquer pessoa a qualquer coisa – um verdadeiro mestre em jogos psicológicos, cujos sinais de marca eram o fatinho sempre impecável, acompanhado de um relógio reluzente e botões de punhos variados. Mel, como era chamada pelo namorado, não lhe ficava a dever nada. Loira falsa, com seios grandes, segundo consta, no sítio e fofinhos, e um cagueiro digno de qualquer latina. Ambos obtiveram cursos académicos com distinção na arte de bem copiar e ambos gostavam da mesma coisa – dinheiro, por isso não seria de estranhar o mau momento visível na relação, ou não estivéssemos em recessão económica.
Com eles, Pilar Rebredo, espanhola e ex-modelo capa da FHM. Ela e Mel eram as melhores amigas pois tinham a mesma profissão - passearem o dia todo nas compras com os cartões de crédito dos maridos. O marido de Pilar, Alberto Marin, jogava à bola no Benfas! Era guarda-redes e às vezes também parava no café, como era o caso de hoje. Daquela mesa, apesar de jogar no Benfica, era Marin o mais porreirinho – estava lá na boa, sabia que não pertencia ao ambiente tipo do café, mas isso não o intimidava, pois com o ordenado que recebia, com o carinho dos fãs, com uma mulher daquelas…sinceramente, nem tinha de abrir a boca para mostrar que tinha uma bela vida e estava a vive-la. Quem o criticasse seria sempre por inveja, como é óbvio.
A t-shirt autografada de Marin também fazia parte do café. Estava nas paredes junto a fotos e autógrafos de celebridades que já passaram por lá, desde escritores, advogados, médicos, actores, desportistas, fotógrafos, jornalistas, gestores, enfim uma paredes com muita história que definia o bar como um ponto de encontro geracional, onde jovens buscavam mediatismo e ensinamentos, e velhos recordavam o passado com tom de saudosismo, de quem tudo conseguiu economicamente, mas agora talvez não se importasse de voltar a trás e mudar muita coisa.
1 comentário:
Bom, bom.Mto bom!
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