00.58 - Quarta-feira, 15 de
Novembro de 2012:
Não consigo adormecer! Bem que
queria mas lá fora o estado caótico da cidade angustiada lança uma nuvem de
raiva que rodeia a minha janela e ameaça entrar em cada uma das frinchas sob a
forma de um ar frio, húmido e melancólico, para tornar este meu pequeno e
último refúgio em mais um canto sem esperança, neste local abandonado por Deus.
Oiço gritos de protesto e contra
movimentações de agressão indiferenciada a ecoarem pelas paredes do
apartamento, como se o início de uma guerra civil não fosse um pensamento
descabido mas uma palpável acendalha junto de madeira e combustível.
São manifestantes a levarem o seu
direito à indignação a extremos de destruição gratuita e polícias de intervenção
com ordens totalitárias para não deixarem a indignação ter voz física nas
paredes, nas montras, nas estradas. A única marca permitida nas ordens chama-se
sangue. Sangue intimidatório.
Oiço um estouro enorme, e nas
paredes do quarto, fogo encardido reflecte-se como se uma chama estivesse a
passear ao longo da rua.
Mas, se existe verdadeiro
“cocktail molotov”, este é de pessoas contra pessoas a explodirem-se umas
contra as outras, apenas com raiva nos olhos.
O simples motivo que originou
tudo no dia de hoje - umas estarem contra as acções de governantes que não se
importam com as especificidades das suas necessidades e outras estarem a
cumprir ordens para salvaguardar as suas próprias necessidades – apenas serve a
quem provocou o caos.
Quem provocou o caos, certamente
não foram os que agora se confrontam.
Foram aqueles que não possuem
coragem para dar a cara. Frente a frente perante as adversidades. Aqueles que
devem assumir as suas responsabilidades. Explicar as suas acções. Demonstrar a
coragem humana de liderança.
Porque quem provocou o caos
alimenta-se deste. Da sua natureza monstruosa. Destruidora de sonhos
simplicistas. Criadora de medos intrinsecamente assimiláveis.
Mas porque quem criou o caos
precisa de cinzas de corajosos entes menores para se reconstruir. Refundar
novas ideias de poder. Confronto entre classes de irmãos. Incerteza e
indefinição. Tempo e desespero. Finalmente, subserviência de almas despojadas
de força para lutar… Ansiosas por um pão duro.
E porque ser rastilho, incitador,
instigador, inflamador, é extremamente fácil quando a protecção está assegurada
por princípios nucleares da natureza humana que verifica numa personagem
facilmente detestável a possibilidade de redenção, caso a protecção física
falhe.
Porque quem hoje luta contra
irmãos com raiva… Amanhã, invariavelmente, perdoará quem o considera filho
bastardo.
Mas ainda quero dormir. Preciso
de dormir.
Aqui sozinho. Longe da confusão
enorme que preenche os cantos à povoada rua.
Aqui sozinho. No meu pequeno
canto, que preenche todos os requisitos para fechar os olhos e sonhar com dias
melhores.
Amanhã tenho que trabalhar! Tenho
tanta coisa para fazer!
Já não durmo bem há dias e estou
desgastado com toda esta situação. Todo este cinzento que reside na sociedade.
Como deixámos chegar as coisas a
este ponto? E porque é que eu continuo a pensar? Porque é que estou preocupado?
Tenho o meu emprego. Tenho a minha casa. Tenho a minha vida. Tenho comida no
estômago… Sobrevivo.
Neste momento, sobreviver é a
única forma de viver. Principalmente para quem tem um cadastro como o meu.
Será que tenho alguma coisa para
tomar na farmácia?
Levanto-me? Sim. Aproveito para mijar, que pode sempre
ajudar qualquer coisa.
Como é que ainda consegue-se ouvir o barulho lá fora? Que
coisa feia.
Os meus pés vibram num taco convertido em onda de madeira
desconforme. Até o pó acumulado levita, tal é a agitação lá fora.
Cada passada, longe do recolher reconfortante que é a
minha cama torna-se um foco de angústia, incerteza, medo.
A porta da casa-de-banho também está a baloiçar ao som de
cada petardo. Ao menos as paredes não estão a perder tinta ou a rachar…
Entro na divisão mais fria da casa mas também a mais
clara. A luz que acende-se, por instantes encandeia os meus cansados olhos. Mas
recupero rapidamente a visão, para encontrar o espelho da farmácia a mostrar-me
uma cara desgastada, destruída, doente, desumanizada.
Abro a farmácia. Não quero mais ver esta figura que não
conheço!
Mas está completamente vazia de medicamentos.
Ela levou-os todos quando fugiu.
Deixa-me mijar. Pelo menos isso.
Como o mijo flui tão branco até à retrete? Sem dúvida, não
estou a abusar na alimentação. Um pequeno prazer, esvasiar a bexiga. Está a
saber bem. Isto, certamente, vai reconfortar-me e acalmar-me. Vou adormecer
bem, sem dúvida.
Acabo. Sacudo. Viro-me e lavo as mãos. Purificação do
corpo. Sinto-me bem. O barulho torna-se secundária perante a certeza de que
agora vou dormir. É uma certeza que trago comigo.
Atiro-me para a cama e enrolo-me nos cobertores! E o corpo
parece saber que vai aquecer rapidamente! Volto a um estado de relaxamento que
já não sentia a algum tempo!
Levantar-me foi boa ideia! Até deu para esquecer um bocado
o barulho.
E, agora a reaquecer o corpo tudo parece bater certo.
Os problemas acontecem. Toda as civilizações, melhor… Toda
a humanidade vive de recorrências históricas.
Se este é um período negro? É, claro. Mas podemos dar a
volta por cima. Como tantas vezes se deu, e se dará.
Eles, lá fora, vão perceber isso. E quem manda também vai
perceber isso. As coisas vão mudar. O meu emprego vai melhorar em condições. A
minha vida vai dar uma volta. Eu estou aqui à sua espera. Crente que vai voltar a
reparar em mim e nas atitudes certas que tomei!